“Na minha sala não tem troca de favor, não tem pressão de empresário”, diz Tite
Tite abriu as portas do local de trabalho à reportagem. E o ambiente diz muito sobre ele. Cada objeto tem um propósito, conta uma história. Cada inscrição, frase ou recorte o inspira de alguma forma.
A sala fica no segundo andar da sede da CBF, na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio. É uma divisão do setor destinado à diretoria de seleções. É o refúgio de Tite quando precisa observar jogos e imaginar soluções para o time. Mais do que isso, um local propício para refletir a respeito da própria trajetória.
“Ali dentro da sala tem algumas coisas que eu posso dizer que não tem: não tem sacanagem e não tem corrupção, não tem troca de favor, não tem pressão de empresário”, avisa logo o treinador da seleção.
Ele hoje reconhece que tem o emprego dos sonhos. Mas só porque o sonho maior de jogar futebol não durou muito. Aí, a carreira precisou de uma correção de rota logo cedo, quando ele tinha 28 anos. O volante se formou em educação física, virou professor e agora vai comandar o Brasil em sua segunda Copa do Mundo consecutiva. “Ali tem o julgamento do atleta na sua performance e a pessoa, o atleta ser humano. Isso que nós buscamos”.
E se tivesse um Big Brother Tite, com câmeras instaladas na sala? “Com áudio não dá (risos). Só a câmera é melhor”, brinca Matheus Bachi, filho e auxiliar do treinador, querendo se precaver com a linguagem usada e as informações que poderiam sair dali.
Num cantinho da mesa de madeira onde Tite almoça, há duas réplicas de taças que cobrem uma foto em tamanho grande mostrando os treinadores das seleções participantes da Copa do Mundo da Rússia, em 2018, tirada por ocasião do sorteio dos grupos. Entre as taças, uma imagem prateada de Nossa Senhora Aparecida cercada por um terço.
A taça da direita é uma réplica da Copa América que Tite ergueu no comando da seleção em 2019, no Maracanã. Essa conquista virou até documentário. Já a da esquerda é uma réplica da taça Jules Rimet, que é o nome do troféu de ouro entregue para as seleções campeãs mundiais desde a primeira Copa, em 1930, até que alguém a conquistasse três vezes e aí tivesse a posse definitiva. O feito foi do Brasil, em 1970. A réplica da Jules Rimet foi presente de um torcedor que Tite resolveu guardar. A da Copa América, da CBF.
Ao ler a frase de Ferguson, que diz que grandes profissionais competem contra si mesmo, Tite confessa que está buscando esse nível de distanciamento. E conta que, um dia, invejou a conquista de um outro técnico.
“Eu tinha inveja de campeão do mundo. Pô, cara! Como é que o Abel Braga foi campeão do mundo? Estava dirigindo, subindo a Serra para um jogo. Aí o Inter foi campeão contra o Barcelona. Tive inveja. Que sensação deve ser… Eu não queria que o outro não tivesse. Mas cobiçar, sim, cobicei”.
Tite foi campeão do mundo em 2012, com o Corinthians.
Essa folha que Tite prendeu no quadro de avisos é o resumo de como o técnico vê o futebol. Em sua visão, a excelência de um time é construída pelo tripé formado por ataque forte, defesa forte e resultados. A página mostra que sua seleção tem alcançado isso, de forma geral, mesmo quando não conquista títulos.
Tite usou uma caneta azul para indicar, à mão, mesmo, os números que apontam a consistência da equipe ao longo de 47 jogos oficiais. O Brasil faz muitos gols (103, nesse recorte), sofre poucos (15 no total, passando 34 jogos sem ser vazado) e ganha muito (37). Sem contar amistosos, foram apenas duas derrotas. Uma para a Bélgica, nas quartas de final da Copa do Mundo 2018, e outra para a Argentina, na decisão da Copa América 2021.
“Excelência é criação e gol, porque esse é o objetivo maior do futebol. A alegria maior é o gol. É solidez defensiva e trabalho de equipe solidário. Por que, sem ela, você vai fazer, mas quantos vai tomar? Ela é necessária nesse ponto de equilíbrio. Aí você está mais perto da vitória. Reúne esses três fatores e tu tá perto da excelência”.
No quadro, também em destaque, há um recorte de jornal, com um texto assinado por Tostão. “Eu li todos os livros dele”.
Tite também não perde uma coluna do campeão de 1970 na Folha de S.Paulo. “Ele tem a capacidade humana de compreender o conjunto todo da obra, porque foi atleta, é formado. Ele tem uma visão macro de interpretação, de aprofundamento. Em termos táticos também”, diz o técnico da seleção.
O texto que está fixado no quadro fala que Neymar deveria se preparar para a Copa do Qatar tal qual Pelé, antes do tri, em 1970. Pode ser a última chance de título mundial do craque do PSG, assim como foi para o Rei. Tite fez o papel de editor e escolheu um trecho específico como título da coluna: “O que move o ser humano é o desejo, a ambição; a vida é sonho”.
Quando falava sobre Tostão na conversa com a reportagem, o treinador ainda acrescentou: “Tem uma frase que me bateu. Às vezes a gente deixa que o personagem, o cargo, engula a pessoa. Eu quero sempre me lembrar que eu sou o Adenor antes do Tite”.
O quadro de avisos fica completo com um lado espiritual. À direita fica uma imagem da “Oração da Luz”, com um desenho de Jesus e abaixo o recado: “Coragem! Eu venci! Você também, comigo, vencerá”.
Um pouco mais ao lado, roubando espaço da colinha dos números dos canais da TV por assinatura, Tite também colocou uma oração do papa Francisco.
O quadro com a foto de Tite sorridente de rosto colado com um dos netos abre o “espaço família” da decoração. Tite é casado com Rosmari há quase 40 anos. Ele é pai de dois filhos, Matheus e Gabriele. O mais velho é auxiliar técnico da seleção e a caçula é socióloga. Matheus é casado com a influenciadora fitness Fernanda e pai dos primeiros netos do treinador, Lucca e Leonardo.
Logo abaixo de Tite e do neto fica um dos objetos de decoração mais curiosos da sala: um quadro com moldura preta escrito “Buscopaz”, simulando uma caixa do remédio Buscopan, que serve para aliviar desconforto e dores abdominais. Na faixa preta onde ficam as informações para que o remédio é indicado, o complemento da piada:
“Indicado para a diminuição de perturbações e agitação. Prolonga o estado de calma e tranquilidade. Paz, do latim Pacem, refere-se à não-violência entre as pessoas ou à guerra entre as nações mundiais. Deve ser desejada e espalhada, diariamente, por cada pessoa para si própria e para os outros.”
O técnico resume: “É uma busca constante e diária”. O quadro é da coleção particular da filha, Gabriele. Tite viu e achou legal. Ela deu de presente e ele pendurou na própria sala. Perguntamos se o treinador da seleção já tinha receitado Buscopaz para Neymar, seu polêmico camisa 10. Ele fugiu da resposta: “Para todos, para todos. A minha dose é junto com o café.”
Até o relógio da sala de Tite tem história. É daqueles analógicos de parede, fundo branco, com os números bem grandes. Mas no meio, dentro do círculo em que os ponteiros rodam durante todo o dia, está uma frase: “Se for falar mal de mim, me CHAME. Sei coisas terríveis a meu respeito.”
O relógio foi presente de uma torcedora na porta da CBF. “É como a molecada diz: ‘quem nunca?’ Eu concordo, só não me peça para contar o que eu sei (risos)”, brinca o treinador. Ele diz que a frase é da escritora e jornalista brasileira Clarice Lispector, mas não há referência à frase na obra dela. Na internet, a frase também é atribuída à escritora e roteirista paulista Tati Bernardi. E também não há referências.
À frente do relógio está uma imagem de Nossa Senhora e uma pequena escultura dourada com três budas, um tapando os olhos, outro tapando os ouvidos e o último tapando a boca. É uma imitação da famosa imagem dos macaquinhos que representam uma divindade budista cuja principal filosofia é não ver, não ouvir e não falar maldades, pois assim seríamos poupados do mal e evitaríamos que ele se espalhasse.
Tite dá seu significado próprio para os budas: “É sobre respeitar os ruídos de fora. Porque nós representamos algumas pessoas, não representamos todas. Humanamente é impossível, então devemos aceitar quem nós não representamos. É fazer tudo com a nossa integridade e com as nossas ideias, sendo fiel a elas. Para aqueles que se identificam conosco, nosso carinho, nossa satisfação e nosso orgulho. Aos outros, nosso respeito. Porque assim é a vida, assim é a realidade.”
Tite também tem fotos de familiares, entre eles a mãe, dona Ivone Bachi, que morreu em 2019, aos 83 anos. A outra foto tem o pai dele, seu Genor Bachi, entre os três homens retratados. Ele morreu em 2009, aos 74 anos. Tite as deixa próximas a alguns símbolos religiosos.
O quadro tático é usado para explicações sobre posicionamento. Aqui, Tite explica como ele vê a seleção brasileira atuando quando está no ataque.
Quando chegou a hora de mostrar os quadros embaixo da televisão, dois deles Tite fez questão de exibir. “Mostra isso também, me dá essa moral”, disse ele, entre risos. São as fotos de quando era jogador. Nessa imagem, o atual técnico da seleção aparece dando uma bicicleta para afastar uma bola. Foi na semifinal do Brasileirão 1986, pelo Guarani, na partida contra o Atlético-MG, disputada em fevereiro de 1987.
Tite nunca escondeu a frustração por não ter tido uma carreira mais longeva no campo. Seus planos foram abreviados por lesões no joelho. As fotografias servem como prova de que ele sabe o que é estar em campo, em jogos importantes. E aqui entra uma anedota dos treinos da seleção já no Qatar.
Na roda com os jogadores, Tite pergunta: “Vocês não sabem que eu jogava. Alguém aí me viu jogando?” Richarlison, então falou: “Jogava muito, professor”.
Fazendo as contas, Richarlison nasceu em 1997, dez anos depois dessa foto aqui ao lado. Sabendo disso, Tite não aguentou: “Tu é vagabundo, rapaz. Sem vergonha”. E gargalhou junto com seus jogadores.
Esse é o retrato de uma comemoração no Brasileirão de 1984, com a camisa da Portuguesa. Uma homenagem da Federação do Piauí. No quadro, duas fichas de jogos contra o Auto Esporte. E Tite fez gol em ambos os jogos. Coisa rara.
Essa daí tem um simbolismo. Eu mandando um beijo para minha namorada para dizer: ou a gente namora em casa ou tchau. Era de Caxias e fui para São Paulo. Ou vai rápido para casar ligeiro? No final, nós casamos”.
A namorada em questão já era Dona Rose.
O item com que Tite fala com maior orgulho é essa camisa, uma répiica das que os jogadores da seleção brasileira campeã mundial de 1970. Foi um presente de Gerson, o Canhotinha de ouro. Tite só queria um autógrafo, mas acabou recebendo uma declaração de amor.
A frase do Canhotinha sensibiliza o treinador, que viu aquela Copa quando era criança e virou fã dos tricampeões. “Tudo o que tem de melhor. É o suprassumo. Não é ser saudosista, é ser realista. É uma reunião de talentos extraordinários. A gente tem que venerar e nada vai ser parecido.”
“Gostaria de jogar nessa seleção”.
Tite já se debruçou em estudos táticos sobre a seleção de 70, consegue descrever o gol antológico de Carlos Alberto Torres na final contra a Itália usando termos como “compensação”, “retomada”, “circulação”, “diagonal” e “combinação”, conversou sobre aquele time com várias personalidades e resumiu a admiração ao enquadrar a camisa autografada por Gérson e pendurar na sala.
Sobre o pedido do Canhota para jogar na seleção, as portas estão abertas: “Eu falei assim: ‘Toma a 8 pra ti!’ (risos).”
O último item da sala é um conjunto de xadrez, presente do assessor de imprensa da seleção Vinicius Rodrigues. Tite não joga mais xadrez porque cansou de perder para o filho, Matheus. Mas uma história, no primeiro capítulo do livro “Guardiola Confidencial”, publicado no Brasil em 2014, explica o jogo.
O autor do livro, Martí Perarnau, narra um encontro entre Pep Guardiola, hoje técnico do Manchester City-ING, e o famoso enxadrista russo Garry Kasparov.
Guardiola era fã de Kasparov e ficou intrigado durante o jantar entre eles porque o grande campeão disse que era impossível competir com Magnus Carlsen, um jogador de xadrez naquele momento apenas promissor (mas que hoje se tornou um dos maiores da história). Como o grande campeão de 50 anos tinha medo de enfrentar um moleque de 22? Obcecado, Guardiola tentou arrancar a explicação ao longo de todo o jantar, mas só conseguiu na hora do cafezinho.
Tite não esquece do que leu: “O Kasparov disse assim: ‘Eu sei que posso ganhar. O que eu não tenho é energia para jogar dez dias de jogo’. Ou seja, quem não quiser pagar o preço, que vá embora. Tem que pagar o preço para estar trabalhando na integralidade. Isso aqui é inspiração: quem quiser estar aqui, tem que pagar o preço.” Perarnau encerra o capítulo dizendo que “naquela noite, Guardiola dormiu pouco e pensou muito”.
Algumas peças do conjunto na sala de Tite estão faltando e nem dá mais para jogar, mas o técnico pensa nisso todo dia em que olha para o tabuleiro.
“Precisa perder para aprender? Não! Discernimento e grandeza tu tem que aprender com vitórias e derrotas. Como? Olhando o processo.”
Por Folhapress